domingo, 3 de outubro de 2010

CRÔNICAS: NARRANDO O NOSSO COTIDIANO.


 Ao chegar na sala do 9ºC me deparei com vários alunos fazendo um pedido um tanto quanto atípico: Ter aula ao Laboratório. Como hoje estava fazendo um pouquinho de frio e a maioria insistiu na proposta, fomos então para o Laboratório. Adaptei a aula ao nosso novo ambiente e os alunos leram em grupo as duas crônicas que seguem abaixo. 





A Cobrança
Moacyr Scliar

Ela abriu a janela e ali estava ele, diante da casa, caminhando de um lado para outro. Carregava um cartaz, cujos dizeres atraíam a atenção dos passantes: "Aqui mora uma devedora inadimplente".
― Você não pode fazer isso comigo ― protestou ela.
― Claro que posso ― replicou ele. ― Você comprou, não pagou. Você é uma devedora inadimplente. E eu sou cobrador. Por diversas vezes tentei lhe cobrar, você não pagou.
― Não paguei porque não tenho dinheiro. Esta crise...
― Já sei ― ironizou ele. ― Você vai me dizer que por causa daquele ataque lá em Nova York seus negócios ficaram prejudicados. Problema seu, ouviu? Problema seu. Meu problema é lhe cobrar. E é o que estou fazendo.
― Mas você podia fazer isso de uma forma mais discreta...
― Negativo. Já usei todas as formas discretas que podia. Falei com você, expliquei, avisei. Nada. Você fazia de conta que nada tinha a ver com o assunto. Minha paciência foi se esgotando, até que não me restou outro recurso: vou ficar aqui, carregando este cartaz, até você saldar sua dívida.
Neste momento começou a chuviscar.
― Você vai se molhar ― advertiu ela. ― Vai acabar focando doente.
Ele riu, amargo:
― E daí? Se você está preocupada com minha saúde, pague o que deve.
― Posso lhe dar um guarda-chuva...
― Não quero. Tenho de carregar o cartaz, não um guarda-chuva.
Ela agora estava irritada:
― Acabe com isso, Aristides, e venha para dentro. Afinal, você é meu marido, você mora aqui.
― Sou seu marido ― retrucou ele ― e você é minha mulher, mas eu sou cobrador profissional e você é devedora. Eu avisei: não compre essa geladeira, eu não ganho o suficiente para pagar as prestações. Mas não, você não me ouviu. E agora o pessoal lá da empresa de cobrança quer o dinheiro. O que quer você que eu faça? Que perca meu emprego? De jeito nenhum. Vou ficar aqui até você cumprir sua obrigação.
Chovia mais forte, agora. Borrada, a inscrição tornara-se ilegível. A ele, isso pouco importava: continuava andando de um lado para outro, diante da casa, carregando o seu cartaz.

O imaginário cotidiano. São Paulo: Global, 2001




Do rock
  
Carlos Heitor Cony

Tocam a campainha e há um estrondo em meus ouvidos. A empregada estava de folga, o remédio era atender o mau-caráter que me batia à porta àquela hora da manhã. Vejo o camarada do bigodinho com o embrulho largo e enfeitado.
— É aqui que mora a senhorita Regina Celi?
Digo que não e fulmino o importuno com um olhar cheio de ódio e sono, mas antes de fechar a porta sinto alguma coisa de íntimo naquele “senhorita Regina Celi”, sim, há uma Regina Celi em minha casa, minha própria filha, mas apenas de 12 anos, uma guria bochechuda ainda, não merecia o título e a função de senhorita.
Chamo o homem que já estava no elevador. Eram CDs, a garota encomendara um mundão de CDs numa loja próxima, e pedira que mandassem as novidades, pois as novidades estavam ali, embrulhadinhas e com a nota fiscal bem às claras.
Gemo surdamente na hora de assinar o cheque e recebo o embrulho. A garota dormia impune, o mundo podia desabar, e ninguém a despertaria do sono 12 anos. Deixo o embrulho em cima do som e volto para a cama, forçar o sono e a tranquilidade interior, abalada pelo cheque tão matutino e fora de propósito. Quando ordeno os pensamentos e ambições no estreito espaço do meu pensamento e retomo um sono e um sonho sem cor nem gosto, começa o rock.
Anos atrás, seria começa o beguine. Mas o beguine passou de moda, e o swing, o mambo, o baião e outras pragas vindas de alheias e próprias pragas. Pois aí estava o rock, matinal, cor de sangue e metal inundando o dia e o quarto com sua voz rouca, seu compasso monótono e histérico.
Purgo honestamente meus pecados e lembro o pai, que me aturava a mania pelos sambas de Ary Barroso. O velho não dizia nada, mas me olhava fundo e talvez tivesse ganas de me esganar. Mas me aturava e aturava o meu Brasil brasileiro.
Hoje, aturo o rock. Vou ao banheiro, lavo o rosto, visto um short e vou para a sala disposto a causar boa impressão à senhorita Regina Celi, que de babydoll, esbaforida, se degringola ao som de U2.
O tapete já fora arrastado e amarfanhado a um canto. Meu castiçal de prata foi profanado com a cara de um tipo até simpático que naquela manhã ganhará alguma coisa à custa do meu labor e cheque.
A senhorita Regina Celi tem a cara afogueada, os pés e as pernas avançam e ficam no mesmo lugar, o corpo todo treme e sua, até que ela me estende o braço.
— Vem, papai!
O peso dos meus invernos e minhas banhas causa breve hesitação. Mas ali estamos, eu e a senhorita Regina Celi, uma menina que ainda pego no colo e aqueço com meu amor e o meu carinho, quando ela tem medo do mundo ou de não saber os afluentes da margem esquerda do rio Amazonas na hora do exame. Ela me chama e me perdoa.
Então, aumento o volume do som, espero o tal do U2 dar um grito histérico e medonho - e esqueço o cheque, a vida e a faina humana rebolando este cansado corpo-pasto de espantos - até que o fôlego e o U2 acabem na manhã e no som.

Crônicas para se ler na escola. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009
Aula de Português rima com tudo, até com laboratório de informática.
Rima também com a biblioteca, com o pátio, com a escola toda e isso inclui a nossa sala.
Pois não existe lugar específico pra parar e ouvir o que cada palavra nos fala.


A leitura estava tão fascinante e interessante. Após a leitura das crônicas, fizemos uma compreensão oral comparando s dois textos, verificando assim as diferenças, semelhanças, os elementos da narrativa e os conceitos de narrativa ficcional e verossimilhança.
Como o registro por escrito do exercício oral ficou como dever de casa, deixo vocês com minhas impressões sobre a aula de hoje.

Professora Solange Francelina de Oliveira 

4 comentários:

  1. Maravilhoso o blog de vocês! O Projeto Poesia trabalha a interdisciplinaridade de forma muito bem integrada. Fiquei muito emocionada com a parte do filme no youtube,os slides ficaram perfeitos e as informações muito bem distribuídas e importantes. Quem acredita nas mudanças educacionais, não espera acontecer, faz a sua parte. Parabéns! (Jacira A. Martins)

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  2. Realmente, esse curso veio no momento certo! Permitiu a realização de maravilhosos trabalhos, e que antes ficariam conhecidos somente nas nossas escolas. Gostei muito de observar as habilidades e criatividade de vocês.
    Jacira A. Martins

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  3. Excelente trabalho, que expõe a grande disparidade econômica e social, existente no Mundo atual e, ao mesmo tempo, busca fortalecer o compromisso dos educadores na formação de seres humanos mais conscientes e voltados ao desenvolvimento sustentável, contribuindo para a formação de uma sociedade mais justa e cooperativa.

    Jacira Alves Martins.

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  4. Trabalhar com textos poéticos,é maravilhoso, parabéns pela iniciativa.
    Dallyla e Maria Lúcia

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